sábado, dezembro 27, 2014

Os Dois Países por Miguel Sousa Tavares



Caminhamos para um confronto civil entre dois países dentro da mesma nação: o país dos que apenas pagam os custos do Estado, na proporção dos seus rendimentos, e sem pouco ou nada esperar dele em troca, e o país dos que pagam (e, muitas vezes, não pagam) os custos, mas esperam tudo em troca. Não somos originais na existência des­tes dois mundos, o independente e o dependente, mas somo-lo na situação de confronto entre eles para que todos os dias caminhamos. Porque, entre uma di­reita liberal que odeia a própria noção de Estado e que, se pudesse, reduzia-o apenas às Forças Armadas e à política externa, e uma esquerda obtusa que acha que ainda vive no pós-guerra e no baby boom e para quem qualquer recuo do Estado é uma afronta ideológica, há, e fatalmente terá de haver, espaço para um compromisso mútuo. E esse compromisso terá de assentar em ideias, mas também em factos. Ao contrário do que os liberais gostam de imaginar, não existem mundos perfei­tos onde todos os que têm valor e se esfor­çam não precisam do Estado para nada: pelo contrário, o que existe, naturalmen­te, são condições de desigualdade estrutu­rais — que começam no berço, conti­nuam na escola e em casa e prolongam-se para a vida profissional. O Estado não pode, pois, demitir-se da sua função de correcção das injustiças pré-existentes e, não o conseguindo, acorrer aos que, sem ajuda e sem protecção, não têm o míni­mo de condições de dignidade de vida: é para isso que pagamos impostos. Mas se o Estado não pode abandonar os que na­da mais têm, também não pode, como gosta de imaginar alguma esquerda, acor­rer a todos, mesmo aos que, tendo-se ha­bituado a viver protegidos, não fazem ne­nhum esforço e não têm qualquer desejo de não precisar de ajuda. Não pode, por­que não tem meios para tal e cada vez vai ter menos. As circunstâncias demográfi­cas, a evolução da esperança de vida, a sofisticação crescente dos recursos médi­cos, a globalização da produção e dos mercados (que, convém recordar, reti­rou centenas de milhões de pessoas da miséria), faz com que os países do welfare state já não possam sustentar, intoca­do, o maravilhoso catálogo de direitos so­ciais que a todos era garantido, quando eu, por exemplo, entrei no mercado de trabalho. Hoje sei, todos sabemos, que a geração de reformados que agora protes­ta contra os cortes nas suas pensões tem muito melhores condições de reforma do que o que eu irei ter e seguramente mui­tíssimo melhores do que aquelas que irão ter os meus filhos — se ainda houver di­nheiro para lhes pagar qualquer pensão. Nos primeiros dez anos deste século, a percentagem do PIB que Portugal gasta a pagar as pensões de reforma quase du­plicou, passando de 9,5% para 18%, e a relação entre trabalhadores activos, con­tribuintes do sistema, e beneficiários, que há uns vinte anos era de 3 para 1, hoje é de 1,4 para 1. Estamos perante uma pro­gressão aritmética (as receitas do Esta­do) a concorrer com uma progressão geo­métrica (as despesas sociais do Estado). E, que eu me lembre da matemática, ja­mais a primeira conseguirá alcançar a se­gunda. Isto não são ideias, são factos, e é sobre os factos que se deve raciocinar. 
Mas há uma cultura instalada de depen­dência do Estado que não autoriza, se­quer, que se raciocine. Vem de muito lon­ge, mas foi cimentada com o salazaris­mo, o gonçalvismo e o Portugal dos di­nheiros europeus. Volto a dizer que subs­crevo quase todas as críticas à política de combate à crise das dívidas soberanas que são feitas à troika, à UE e à Alema­nha, e que conseguiram juntar a uma cri­se financeira dos Estados uma crise eco­nómica das nações. Mas, independente­mente das razões de queixas externas que temos, nada — a não ser a demago­gia dos políticos, sufragada pelo comodis­mo dos eleitores — nos pode dispensar de olhar para as responsabilidades próprias na tragédia que nos aconteceu e que só irá piorar, se insistirmos em meter a cabe­ça na areia e repetir até à náusea que a culpa é "deles" (essa entidade semiabstracta que deveria ser capaz de fazer nas­cer petróleo nas Berlengas e euros na de­funta Casa da Moeda, onde antes nas­ciam escudos).
Olhar para as responsabilidades pró­prias significa, hoje e nesta conjuntura, encontrar um compromisso para um Es­tado, que assegure o essencial a todos e mais do que isso apenas a uma minoria. Fazendo-o com os meios razoáveis ao seu dispor e não à custa da ruína do país. Isso passa por reformar o Estado, reduzi-lo na sua dimensão e funções? Com certeza que sim, mas antes um Es­tado diminuído do que um país falido. E passa por rever a Constituição? Com cer­teza que sim, mas antes uma Constitui­ção revista e menos populista do que um país de desempregados e emigrados, no pleno gozo de todos os direitos constitu­cionais imagináveis.
Olho, por exemplo, para os mais recen­tes focos de contestação sócio-profissional, e constato que todos os sectores ac­tivos estão ligados ao Estado: os trans­portes públicos — o cancro financeiro das contas públicas e a tropa de choque da CGTP, sempre disponíveis para as greves e para a luta pela manutenção de alguns privilégios impensáveis no sec­tor privado; os professores a mando da Fenprof, que já ninguém se incomoda sequer em saber o que os incomoda, porque tudo os incomoda; os magistra­dos e a PJ (que, com um carro por cada dois agentes e uma sede sumptuosa à beira da inauguração, protestam contra as "condições de trabalho"); as Forças Armadas, que acham pouco 5000 pro­moções num ano e num país onde há anos ninguém mais é promovido e que continuam a sua luta para nos conven­cer de que uma apendicite de um mari­nheiro não pode ser tratada no mesmo hospital que a apendicite de um artilhei­ro ou de um mecânico de aviões, e que acabam de fazer a escandalosa desco­berta de que têm de esperar por uma consulta, como se fossem utentes do SNS. A todos eles apetece repetir a céle­bre frase de Vítor Gaspar: "Não há di­nheiro. Qual destas três palavras é que não perceberam?".
Mas, entre os milhares de empresas que foram à falência desde que a crise co­meçou, não há uma só empresa ou servi­ço público. Não há um funcionário do Es­tado despedido entre os mais de 600.000 portugueses desempregados. E, entre os 100.000 que se estima que terão emigrado este ano, não há um servi­dor do Estado que o tenha feito depois de perder o emprego. No Estado, nada se extingue, nenhum trabalhador efectivo é dispensado, não há lay-off, as horas ex­traordinárias são sempre pagas e as redu­ções salariais têm de passar pelo Tribu­nal Constitucional. Não sou, como acima disse, um adversário ideológico do Esta­do e, menos ainda, penso que os trabalha­dores do Estado sejam piores do que os outros: pelo contrário, nada me provou até hoje a verdade dessa crença. Mas não há maior mentira acerca desta crise do que dizer que são os trabalhadores do Es­tado que têm pago o grosso da factura. E até seria natural que assim fosse, pois quem faliu e quem necessita de reduzir despesa é o Estado e não a economia. Mas quem tal diz, ignora por completo o que sejam os inúmeros dramas que suce­dem "cá fora" e a ginástica que tantos fa­zem para sobreviver todos os dias, sem qualquer tribunal que os proteja e sem voz que chegue à imprensa. Tomara uma pequena parte que fosse dos quase qua­tro milhões de trabalhadores do sector privado deste país poder arriscar uma greve "por melhores condições de traba­lho"! Onde isso já vai!
Ou nós controlamos o "monstro" de uma vez por todas ou ele nos arrasta a todos para o fundo. Quem diz o contrá­rio, mente. E foi essa mentira continua­da que nos trouxe até aqui.

Artigo publicado no Expresso a 9/11/2013 (http://expresso.sapo.pt/os-dois-paises=f840039
 
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