Os Dois Países por Miguel Sousa Tavares
Caminhamos para um confronto civil entre dois países dentro da mesma nação: o país dos que apenas pagam os custos do Estado, na proporção dos seus rendimentos, e sem pouco ou nada esperar dele em troca, e o país dos que pagam (e, muitas vezes, não pagam) os custos, mas esperam tudo em troca. Não somos originais na existência destes dois mundos, o independente e o dependente, mas somo-lo na situação de confronto entre eles para que todos os dias caminhamos. Porque, entre uma direita liberal que odeia a própria noção de Estado e que, se pudesse, reduzia-o apenas às Forças Armadas e à política externa, e uma esquerda obtusa que acha que ainda vive no pós-guerra e no baby boom e para quem qualquer recuo do Estado é uma afronta ideológica, há, e fatalmente terá de haver, espaço para um compromisso mútuo. E esse compromisso terá de assentar em ideias, mas também em factos. Ao contrário do que os liberais gostam de imaginar, não existem mundos perfeitos onde todos os que têm valor e se esforçam não precisam do Estado para nada: pelo contrário, o que existe, naturalmente, são condições de desigualdade estruturais — que começam no berço, continuam na escola e em casa e prolongam-se para a vida profissional. O Estado não pode, pois, demitir-se da sua função de correcção das injustiças pré-existentes e, não o conseguindo, acorrer aos que, sem ajuda e sem protecção, não têm o mínimo de condições de dignidade de vida: é para isso que pagamos impostos. Mas se o Estado não pode abandonar os que nada mais têm, também não pode, como gosta de imaginar alguma esquerda, acorrer a todos, mesmo aos que, tendo-se habituado a viver protegidos, não fazem nenhum esforço e não têm qualquer desejo de não precisar de ajuda. Não pode, porque não tem meios para tal e cada vez vai ter menos. As circunstâncias demográficas, a evolução da esperança de vida, a sofisticação crescente dos recursos médicos, a globalização da produção e dos mercados (que, convém recordar, retirou centenas de milhões de pessoas da miséria), faz com que os países do welfare state já não possam sustentar, intocado, o maravilhoso catálogo de direitos sociais que a todos era garantido, quando eu, por exemplo, entrei no mercado de trabalho. Hoje sei, todos sabemos, que a geração de reformados que agora protesta contra os cortes nas suas pensões tem muito melhores condições de reforma do que o que eu irei ter e seguramente muitíssimo melhores do que aquelas que irão ter os meus filhos — se ainda houver dinheiro para lhes pagar qualquer pensão. Nos primeiros dez anos deste século, a percentagem do PIB que Portugal gasta a pagar as pensões de reforma quase duplicou, passando de 9,5% para 18%, e a relação entre trabalhadores activos, contribuintes do sistema, e beneficiários, que há uns vinte anos era de 3 para 1, hoje é de 1,4 para 1. Estamos perante uma progressão aritmética (as receitas do Estado) a concorrer com uma progressão geométrica (as despesas sociais do Estado). E, que eu me lembre da matemática, jamais a primeira conseguirá alcançar a segunda. Isto não são ideias, são factos, e é sobre os factos que se deve raciocinar.
Mas há uma cultura instalada de dependência do Estado que não autoriza, sequer, que se raciocine. Vem de muito longe, mas foi cimentada com o salazarismo, o gonçalvismo e o Portugal dos dinheiros europeus. Volto a dizer que subscrevo quase todas as críticas à política de combate à crise das dívidas soberanas que são feitas à troika, à UE e à Alemanha, e que conseguiram juntar a uma crise financeira dos Estados uma crise económica das nações. Mas, independentemente das razões de queixas externas que temos, nada — a não ser a demagogia dos políticos, sufragada pelo comodismo dos eleitores — nos pode dispensar de olhar para as responsabilidades próprias na tragédia que nos aconteceu e que só irá piorar, se insistirmos em meter a cabeça na areia e repetir até à náusea que a culpa é "deles" (essa entidade semiabstracta que deveria ser capaz de fazer nascer petróleo nas Berlengas e euros na defunta Casa da Moeda, onde antes nasciam escudos).Olhar para as responsabilidades próprias significa, hoje e nesta conjuntura, encontrar um compromisso para um Estado, que assegure o essencial a todos e mais do que isso apenas a uma minoria. Fazendo-o com os meios razoáveis ao seu dispor e não à custa da ruína do país. Isso passa por reformar o Estado, reduzi-lo na sua dimensão e funções? Com certeza que sim, mas antes um Estado diminuído do que um país falido. E passa por rever a Constituição? Com certeza que sim, mas antes uma Constituição revista e menos populista do que um país de desempregados e emigrados, no pleno gozo de todos os direitos constitucionais imagináveis.
Olho, por exemplo, para os mais recentes focos de contestação sócio-profissional, e constato que todos os sectores activos estão ligados ao Estado: os transportes públicos — o cancro financeiro das contas públicas e a tropa de choque da CGTP, sempre disponíveis para as greves e para a luta pela manutenção de alguns privilégios impensáveis no sector privado; os professores a mando da Fenprof, que já ninguém se incomoda sequer em saber o que os incomoda, porque tudo os incomoda; os magistrados e a PJ (que, com um carro por cada dois agentes e uma sede sumptuosa à beira da inauguração, protestam contra as "condições de trabalho"); as Forças Armadas, que acham pouco 5000 promoções num ano e num país onde há anos ninguém mais é promovido e que continuam a sua luta para nos convencer de que uma apendicite de um marinheiro não pode ser tratada no mesmo hospital que a apendicite de um artilheiro ou de um mecânico de aviões, e que acabam de fazer a escandalosa descoberta de que têm de esperar por uma consulta, como se fossem utentes do SNS. A todos eles apetece repetir a célebre frase de Vítor Gaspar: "Não há dinheiro. Qual destas três palavras é que não perceberam?".
Mas, entre os milhares de empresas que foram à falência desde que a crise começou, não há uma só empresa ou serviço público. Não há um funcionário do Estado despedido entre os mais de 600.000 portugueses desempregados. E, entre os 100.000 que se estima que terão emigrado este ano, não há um servidor do Estado que o tenha feito depois de perder o emprego. No Estado, nada se extingue, nenhum trabalhador efectivo é dispensado, não há lay-off, as horas extraordinárias são sempre pagas e as reduções salariais têm de passar pelo Tribunal Constitucional. Não sou, como acima disse, um adversário ideológico do Estado e, menos ainda, penso que os trabalhadores do Estado sejam piores do que os outros: pelo contrário, nada me provou até hoje a verdade dessa crença. Mas não há maior mentira acerca desta crise do que dizer que são os trabalhadores do Estado que têm pago o grosso da factura. E até seria natural que assim fosse, pois quem faliu e quem necessita de reduzir despesa é o Estado e não a economia. Mas quem tal diz, ignora por completo o que sejam os inúmeros dramas que sucedem "cá fora" e a ginástica que tantos fazem para sobreviver todos os dias, sem qualquer tribunal que os proteja e sem voz que chegue à imprensa. Tomara uma pequena parte que fosse dos quase quatro milhões de trabalhadores do sector privado deste país poder arriscar uma greve "por melhores condições de trabalho"! Onde isso já vai!
Ou nós controlamos o "monstro" de uma vez por todas ou ele nos arrasta a todos para o fundo. Quem diz o contrário, mente. E foi essa mentira continuada que nos trouxe até aqui.
Artigo publicado no Expresso a 9/11/2013 (http://expresso.sapo.pt/os-dois-paises=f840039
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