terça-feira, janeiro 20, 2015

Um gesto abominável que deu importância à insignificância

Num mundo com sete mil milhões de pessoas há um país com 65 milhões de habitantes que edita uma revista com uma tiragem de 60 mil números. Ou seja, num mundo de sete mil milhões de pessoas havia 60 mil alminhas que compravam uma revista que quase todos os outros consideravam de mau gosto.
Mas o mau gosto tem o direito de existir, ou deve ter.

Essa revista de mau gosto gozava com o que muitos consideram sagrado. Tinha cartoons que muitos consideram nojentos. Era lida por uma minoria ínfima da população e a grande maioria das pessoas ignorava a sua existência ou, simplesmente, optava por ignorar a sua presença. Não interessava. Não tinha piada para a grande maioria da população. Tinha até vários cartoons que metiam nojo à grande maioria da população... É assim que o mundo funciona. As coisas existem. Algumas são-nos visualmente desagradáveis, outras ao ouvido, outras pelo cheiro, etc. Por norma, aquilo que nos desagrada e incomoda até pode perturbar-nos por uns instantes, deixar-nos o "coração na boca", mas somos suficientemente crescidinhos, civilizados, para respirar fundo e passar à frente; ignorar o que nos perturba, porque é mesmo só isso que faz: perturba. Vai contra a nossa opinião, as nossas crenças ou ideologias e levamo-lo a peito - por uns instantes. Uns instantes apenas. Somos, na maioria, crescidinhos e conseguimos conviver com quem tem crenças e ideologias diferentes das nossas. Conviver ou, simplesmente, ignorar.

Mas nem todos são assim.

Existe um grupo de pessoas para quem aquele "coração" nunca sai da boca. Para quem aquela perturbação se transforma numa fúria, numa raiva, que os leva a querer eliminar todos aqueles que vão contra as suas crenças ou as suas ideologias. E não sabem, nem querem saber, conviver com qualquer pessoa que tenha uma opinião, por mínima que seja, diferente da sua. E não se adaptam ao mundo, exigindo que o mundo se adapte a si. São os ditadores em potência. E aqueles desenhos que 60 mil pessoas compravam, e dos quais poucos mais que isso riam, foram razão suficiente para matar quem tinha "um lápis na mão". E aquela revista, ignorada pela grande maioria da população mundial, passou a ser do conhecimento dessa mesma população. E aquela revista sem importância, que muitos consideram de mau gosto, que satiriza com aquilo que os assassinos (e os defensores dos mesmos) consideram sagrado, passou a ser do conhecimento da quase totalidade do 7 mil milhões de pessoas que o mundo tem... e aquela revista que tinha uma tiragem de 60 mil números, que 60 mil alminhas compravam e à qual um número irrisório de pouco mais que isso achava graça, passou a ser defendida pela grande maioria, e comprada por 7 milhões de almas. E aqueles homens que tinham um lápis na mão, que gozavam com o que para muitos era sagrado, que eram desconhecidos da grande maioria das pessoas que vivem no mundo, tornaram-se símbolos de liberdade, tiveram os seus nomes escritos por jornais de todo o mundo, "ouviram" sinos a soar por si, deram origem a manifestações. E aqueles cartoons com os quais a grande maioria nem concorda, transformaram-se num direito, numa demonstração de "não cedência". Porque já vamos cedendo em não mostrar outros símbolos religiosos, porque a nós não nos incomoda dado que a maioria ocidental é ateia, mas agora exigem que deixemos de desenhar e, se cedemos, amanhã mata-se uma mulher que vá na rua com calças porque isso também os ofende e de seguida vamos fechar todos os bares e proibir o álcool, ou os sinos das igrejas vão ser proibidos de soar porque os ofende... E, com este gesto, com esta violência, aqueles que se ofenderam com os desenhos que pouco mais de 60 mil pessoas viam, tornaram-nos conhecidos para quase 7 mil milhões de pessoas, fizeram-nos perceber que existe um número significativo de extremistas que querem que recusemos a nossa cultura para não ofender a sua, levaram o mundo inteiro a comentar e deram visibilidade mundial àquilo que não queriam que fosse visto.

Resta saber se, depois da "ressaca" dos ataques, vamos ceder mais um bocadinho ou vamos mostrar que "basta!": Esta é a nossa cultura, são os nossos países. Não gostamos de tudo, temos muitos defeitos, há coisas das quais nem todos gostamos, mas convivemos com isso. Há pessoas que riem de coisas de mau gosto. Mas é preferível concordar que existam pessoas a rir de um desenho de mau gosto, do que concordar que uma criança rebente e mate dezenas à sua volta, que uma mulher que seja violada só porque usava rímel ou que um jornalista seja degolado para transmitir a mensagem que todos os que não acreditam no mesmo que nós podem ter esse destino.
No nosso mundo ocidental temos muitos defeitos mas, regra geral, aprendemos a conviver uns com os outros e aceitamos que todos para aqui venham viver as suas culturas e ter as suas crenças, desde que não nos exijam que abdiquemos das nossas e da liberdade que temos vindo a conquistar ao longo dos anos.

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