quarta-feira, março 03, 2010



O tempo para para podermos refletir

Acusados que somos, aqueles contra o acordo ortográfico, de estarmos agarrados ao passado e a um português antiquado, decidi escrever o porquê de ser contra o acordo ortográfico.
Mais do que o estilo, mais do que as tradições, está o facto do português e as suas variantes estrangeiras serem diferentes na fala e, como tal, na leitura. Ora se lemos as coisas de forma diferente também, necessariamente, temos de escrevê-las de outra forma.
Um exemplo prático:
Com o acordo ortográfico querem impor-nos que a terceira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo parar (ele pára) passe a escrever-se da mesma forma que a preposição ‘para’. Ora isto no Brasil funciona porque os brasileiros, naturalmente, abrem as vogais pronunciando ambas as palavras da mesma forma (pára), para os portugueses é uma grande confusão porque uma é aberta a outra é fechada e onde vai parar o sinal que indica que a forma verbal do verbo parar é aberta? Por que razão, no português padrão de Portugal aquele acento, que nos faz ler tal como dizemos vai desaparecer? Pela lógica a terceira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo parar passaria a dizer-se da mesma forma que a preposição para e, das duas uma, ou ficamos diferentes dos brasileiros e fechamos todas as vogais ou os imitamos (também na forma de falar) e passamos a abrir tudo. Seja qual for a hipótese estamos, forçosamente, a matar o nosso português. Se continuarmos a dizer uma aberta e a outra fechada porque, como dizem os defensores do acordo, percebe-se qual é uma e outra pelo contexto, então estamos, obrigatoriamente, a escrever mal uma delas.

Claro que existem actualizações neste acordo que em nada alteram a forma de falar portuguesa, tal como a “queda” do H inicial nas palavras e, sobre essas, nada contra ainda que me custe muito passar a escrever istória em vez de história. Parece-me que a palavrinha fica nua, mas existe alguma lógica nesta alteração. No entanto, e nesse caso, acho parvo que se continue a escrever pré-história... Algo está errado aqui e como vamos explicar aos nossos filhos que, numa palavra composta, os H’s que dantes existiam mas que eles agora não escrevem nem conhecem, continua a ficar lá alegremente?... não tem lógica e complica em vez de simplificar. Ou tiram de vez o H ou o mantêm, não pode é ficar neste meio termo ao sabor sabe-se lá de quê.

Temos depois o caso tão falado do C com valor de oclusiva velar, assim como o P das sequências interiores e que se mantêm em palavras onde são “lidos”, tais como compacto, convicção, adepto, apto, erupção, e desaparecem em palavras como acção, tecto, aspecto, directo, adopção (ação, teto, aspeto, direto, adoção).
Até pode aparentar que as referidas letrinhas não são lidas, são letrinhas mudas que nada fazem ali a não ser aumentar a palavrinha. Mas isso não é verdade. Aquelas letras funcionam como se de um acento se tratassem e abrem as vogais que se encontram antes delas porque, mais uma vez, a forma de dizer estas palavras é diferente em Portugal e no Brasil e, como tal, tem toda a lógica que também a sua escrita seja diferente. Ou seja, a palavra acção sem aquele c, pela lógica passaria a ter o primeiro A como vogal fechada em vez de aberta. Se querem retirar os C e P podem fazê-lo mas, nesse caso, coloquem acentos para abrir a vogal: áção, této, aspéto, diréto, adóção... neste caso seria aceitável a referida alteração. Mas para os brasileiros não teria muita lógica pois eles lêem tal como já escrevem. Na variante de português deles a forma da escrita está correcta, no padrão de Portugal vai deixar de estar.

Depois há o facto das excepções, tal como o facto e o fato, o bebé e o bebê, o indemnizar e o indenizar... passam a ser ambas aceites para que no Brasil se continue a escrever fato, bebê, e indenizar e em Portugal se continue com o facto, o bebé e o indemnizar. E eu pergunto, mas estas alterações todas, que tanta discordância trazem, não tinham o objectivo de escrevermos todos da mesma forma? Nesse caso, que lógica tem haver excepções? Se há excepções porque não deixar tudo excepcionalmente tal como está e ficamos todos mais felizes?

Para além de tudo isto, alguns aspectos do referido acordo já foram implementados, desde 1990 em Portugal. Todos aqueles que tinham lógica (tal como a supressão de alguns hífenes (ex: América-do-Sul)). Aqueles que não têm lógica, pela forma como falamos, são os que estão a ser de difícil aceitação porque é uma questão de bom senso. Se falamos assim não devemos escrever de outra forma, tal como os brasileiros nunca aceitaram todas as anteriores propostas de acordos ortográficos feitas ao longo da história porque, nesses casos, era a forma de escrever deles que iria ficar diferente da forma de falar.
Cada povo tem a sua cultura e a sua forma de moldar a língua. O Português em Portugal é um português mais puro, mais ligado à sua origem latina, o Português no Brasil é um português mais popular e misturado com uma série de dialectos ligados à história do próprio Brasil.
Mudarmos a nossa forma de escrever é matar o português, é impedir que a língua evolua por si mesma e se modernize. É obrigar um povo a falar de forma diferente à pressa e por pressão, é matar ainda mais o latim e a nossa ligação a essa língua. É ter de alterar toda a forma do ensino em Portugal, desde a forma de ensinar português até à importância que aprender latim tem para os alunos de letras. É assassinar milhares de poemas e obras literárias cujos autores tão bem jogam e brincam com as palavras. Palavras que, agora, vão ser diferentes e muitos desses jogos são perdidos para sempre. É matar a nossa herança e roubar aos nossos filhos o amor por falar e escrever uma língua tão pura e única e diferente daquela que se escreve do outro lado do oceano. Teremos esse direito?